segunda-feira, 24 de setembro de 2007

3/4


Três quartos é uma quantidade que quase sempre representa muito. Bom, pra mim pelo menos. É muito porque, seja lá do que for, já passou da metade mais a metade da metade.

¾ de um dia, por exemplo. Essa hora já está anoitecendo, então já passou muito desse dia.
¾ de uma pizza, é quase ela inteira, é muito.
¾ de um livro, ele está quase no fim. Isso quer dizer que já foi lido muito.
¾ de um job que tem que ser entregue logo. É aquele momento do alívio, porque sabe-se que está bem encaminhado, trabalhou-se muito nele.
¾ de um cd são suficientes para escutar quase todas as músicas, muitas músicas.
¾ de um pote de sorvete. É quando a gente pega a colher e ela encosta-se ao fundo. Isso acontece porque já comemos muito.

Mas...

Quando o assunto é a pobreza no mundo, aí 3/4 não representam apenas muito, representam praticamente tudo:

- ¾ da população mundial vive abaixo da linha da miséria.

Leia-se:

“linha da miséria” - quem vive com até 2 dólares ao dia;
“abaixo da linha da miséria” - que existem pessoas no mundo que sobrevivem com MENOS de dois dólares ao dia;
“¾” - que essas pessoas compreendem quase toda população do globo.

Isso não me sai da cabeça.

Falta de amor? Só pode...

Será que amar é vocação, daquelas que uns nascem com, outros sem?

Hummm... Tomara que não.

¾ do coração das pessoas que compõem o ¼ restante da população do planeta, bem que poderiam ser tomados de AMOR.

Mas ahhhhhhh, se amar fosse fácil...

Disse o Frei Betto, num artigo chamado “A paz dos meus sonhos”, escrito certa vez para a Ouvidoria do site do Ministério da Fazenda: “(...) Ao equilíbrio de forças, acrescia a justiça; à justiça, adicionava o amor. Só o amor é capaz de superar o direito e evitar fazer das diferenças divergências, pois nos ensina a ajudar e conviver com aquele que não é como nós nem pensa como pensamos e, no entanto, possui a mesma dignidade humana (...)”.
* Este texto foi escrito há cerca de 1 ano. Como ontem assisti ao programa Roda Viva com o Mano Brown, resolvi postá-lo. Achei que tinha a ver... sei lá.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

ainda sobre a pureza...


Em um desses domingos de inverno, frios e garoentos, acordei e fui comer pastel na feira. Fomos eu, a Carol - minha irmã - e a Fé, nossa amiga. Cá entre nós, hoje em dia, até escolher o pastel é uma tarefa árdua. A gente se estressa já com a quantidade de sabores, que vão dos tradicionais carne e queijo, aos peculiares estrogonofe, carne seca com catupiry e portuguesa – que até então, na minha humílima concepção, existia apenas como pizza.

Escolha definida, pedido feito. Enquanto esperávamos, os assuntos da semana vinham à tona, a prosa ia longe, os gestos se inflamavam. Em um dos muitos tiques e acenos retóricos, algo atraiu a atenção da Fé:

- Olha aquelas crianças, que lindas! - eram duas realmente belas e muito parecidas. Um menino e uma menina, cujas idades aparentavam não ultrapassar os 8 anos. Traços fortes, indígenas. Pele morena, cabelos lisos, bem pretos, cortados como tigelinha. Estavam em frente à banca, de pé, meio inquietos. As perninhas da menina tremiam, denunciando a expectativa ansiosa.

- Lindos, não?! Devem ser irmãos. Acho que estão com aquele rapaz. - presumiu minha irmã, referindo-se a um jovem também índio, de vinte e poucos anos, que estava logo ao lado.

Conversa vai, conversa vem. O tempo foi passando, o jovem indígena recebeu seus pedidos, foi embora, e as duas crianças continuaram lá. Olhares atentos aos pastéis que saíam.

Comecei então a repará-las. Percebi que, embora a aparência facial fosse saudável, ao baixar meu olhar, suas roupas estavam sujas e os pés descalços. Conclui que não estavam ali esperando a chegada dos próprios pastéis, apenas contemplavam aquele momento de prazer alheio.

A vontade de saborear um dos quitutes recém fritos, saídos um a um em suas frentes, era eminente. A expressão em seus rostos impressionava. Mesmo ansiosa, refletia uma serenidade singular. As perninhas balançavam, mas as testas não franziam. Eram crianças diferentes das outras muitas que cruzamos em situação análoga, nos faróis ou em outros lugares. Embora os minutos naquela labuta já ultrapassassem os trinta e tantos - apenas no desejo e aguço do olfato, aliciado pelo cheiro dos pastéis –, os pequenos índios não faziam qualquer tipo de menção, que nos levasse a crer que, em algum momento, eles chegariam a verbalizar aquele desejo a alguém. Em uma passividade espantosa para quem não está acostumado, eles não pediam, só olhavam mesmo.

- Carol, chame-os. Vamos pegar um pastel pra eles! – manifestei-me.

Viraram desconfiados. Os olhos da menina brilharam, marejados. As perninhas começaram a balançar mais rapidamente, como se a ansiedade estivesse atingindo o ápice. Mas ela não falava nada. Apenas olhava para o menino a toda hora, como se solicitasse permissões constantes. Então presenciei algo lindo que, no cume da minha ignorância urbana, emocionou-me. Como se não pudéssemos saber sobre o que diziam, começaram a falar em outro dialeto.

- Vamos, escolham! – insistiu minha irmã.

Só então os dois esboçaram um sorriso. O garoto antes, a garota depois, como se o consentimento tivesse-lhe sido dado.

- Em que língua vocês conversaram? – perguntei-lhes.

- Guarani – respondeu-me o menino

Ele chamava-se Rodrigo. Ela, Franciele. Única palavra que pronunciara.

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O Rodrigo e a Franciele são apenas dois dos cerca de 880 moradores da aldeia da Barragem, que fica no bairro de Parelheiros, extremo sul de São Paulo. A comunidade dispõe de 23,6 hectares de terras muito, muito pobres e negligenciadas. Favelas.

Apesar de toda devastação cultural que sofreram e continuam sofrendo, os índios têm alma bélica, algo que pôde ser constatado desde a colonização. Quando os Europeus abarcaram aqui, em 1500, com a falta de mão de obra, a primeira idéia “brilhante” que tiveram foi escravizar os homens selvagens que já se encontravam na terra, até então, virgem. Não conseguiram, claro. Como guerreiros natos que são, os índios só sobrevivem quando puros. Caso contrário, preferem acabar com a própria vida. E, pelo que me consta, cadáveres não são bons lavradores.

Ao longo dos 500 anos que se sucederam desde então, as tribos passaram por um processo de quase extinção. Hoje, segundo dados fornecidos pela FUNAI, vivem no Brasil cerca de 460 mil índios, distribuídos em 225 sociedades indígenas – número que compreende aproximadamente 0,25% da população brasileira, apenas.

Mesmo assim, a cultura indígena é algo que consegue vencer gerações de descaso e violência étnicos. Essas crianças são exemplos disso. Elas nunca viveram como índios de verdade, a aldeia em que moram é uma verdadeira musseque e, mesmo assim, ao conversarem, o português saía aos tropeços, mas o guarani não, era perfeito. Mesmo que por inércia, possuíam no jeito de falar e escutar, na graça, na cabeça, tudo que seus ancestrais viveram. Jovens índios como eles, que estão espalhados por diversos locais do território nacional, fazem coisas que mal sabem por que estão fazendo. Mas está no sangue, está na história e, de alguma forma, está vivo na mente deles também. E só por isso o fazem.

O Rodrigo e a Franciele são meninos educadinhos e desconfiados de tudo que não venha deles. Ela baixava a voz e a cabeça diante da presença masculina em sua companhia. Mesmo assim, ao contrário do que percebemos em nossa tão harmoniosa e evoluída estrutura social branca, aquele não era um ato agressivo, de submissão. Mas um trejeito sutil e gracioso, que conotava um deixar-se proteger, admitindo-se frágil. E ele protegia.

Eles têm brio.

É claro que muita coisa da cultura indígena já se perdeu e, infelizmente, a tendência é perderem-se cada vez mais. Mas o que alimenta meu otimismo são essas oportunidades com as quais o universo me presenteia. Presenciar a resistência esperançosa daqueles pequeninos índios, representou ali uma nova geração de guerreiros que não se entregam, e assim, não perderam sua essência no tempo e no espaço. Conhecem bem quem são e porque o são. Dessa forma, poderão alimentar intelectualmente com os mesmos preceitos de seus antepassados, uma próxima geração. Sim, porque só resiste bravamente quem tem esperança. E a história permite afirmar que eles resistiram sempre. O espírito da luta corre no sangue índio.

Perceber isso, aguçou também a minha esperança.

Embora já poucos, eles são exemplo vivo e, na medida do possível, feliz, da pureza que tanto acredito e defendo.

Minha mãe contou certa vez, que quando ainda estudava no colégio, escreveu uma redação que ganhou vários prêmios. Falava sobre os índios e os brancos. Nela, contava que nós, os caraíbas, deveríamos ser aliens que foram trazidos para a Terra há milhares de anos. Porque é inadmissível que, desde os primórdios, tenhamos tido tão pouca intimidade com o planeta que nos geriu.

Terrestre mesmo, acompanhando tal teoria, seriam os índios. Eles sim, viviam em perfeita harmonia entre si e com a natureza. Sabiam apreciar cada pequena coisa com a qual o mundo os presenteava, expressando sua generosidade e sabedoria. E neste contexto, sentiam-se completos. Nada lhes faltava. Eram gratos à mãe terra. O planeta, na concepção indígena, não precisava passar por transformações, evoluir. Ele era a casa perfeita para que, nela, pudessem cumprir sua única missão em vida: ser feliz.

Bom, todo esse textão só pra falar que:

- Mã, eu concordo com você!

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

sobre a pureza 2


"A pura construção da felicidade, feixe a feixe de luz, denunciando que a vida é um prazo imperdível, para somar ao coração, a essencialidade do que é outro."
Pureza, segundo Fernando Gil (1937-2006)

Tem gente que fala da pureza de um alimento que acaba de ser-nos presenteado pela natureza.
Tem gente que fala da pureza de uma criança que nasceu há pouco.
Tem gente que fala da pureza de um cachorro que felicita seu dono, mesmo depois de uma bronca daquelas.
Tem gente que fala da pureza da água, de metais preciosos, da pureza sexual.

Mas pra mim, pureza é muito mais. É algo que brota da essência...

Uma abstração.

Simples assim. Tanto, que complica.

Misteriosa no que “não é nem está”. Ausência laboriosa...

...de tudo que contamina. De qualquer coisa que impeça a autenticidade, que faça perder-se na tentativa de encontrar a missão no mundo... À que veio.

É tão visceral, que às vezes dribla a felicidade e sofre, mesmo sem querer.

Incrível, permeia os extremos: confunde e elucida. Alegra escandalosamente e acovarda em valentia.

Permite o autoconhecimento a partir das relações estabelecidas com outros.

Liberta e gratifica.

Vai à contramão da crença majoritária, portanto, assumi-la exige resistência, força e, algumas vezes, muita luta. Guerra.

Independe daquela sua mania de falar tanto palavrão, de sua espontaneidade incompreendida e escandalosa, dos muitos sonhos atemporais, aventuras sexuais ou devaneios irreais.

Ela ignora tudo isso.

Daí, a beleza da pureza.

Em suma: ela é tudo que te contém.

É apenas você...

...vindo da alma, com escala no coração.

domingo, 2 de setembro de 2007

sobre a pureza 1


(Atendendo às perguntas)

Como já é bem sabido, poucas décadas após a colonização da então "Ilha de Vera Cruz”, escravos começaram a ser trazidos da África para suprir a necessidade de mão de obra. Transportados em condições desumanas, ao chegarem, eram recortados do contexto do qual vieram. Aqui, seriam obrigados a trabalhar a troco de nada, em empreitadas que, para eles, não faziam sentido. Mercantilizados, eram separados de suas famílias e coibidos de tudo que os remetesse ao que realmente eram, à suas congenitudes. Vidas anuladas.

E assim, o tempo ia passando. Maus tratos e muito trabalho, de sol a sol, dia após dia.

Mas o fato é que, no fim, todos os esforços contra a dissipação da cultura africana acabavam não adiantando muito. Porque a senzala...

Ahhh... Ela tinha um ar próprio e um aroma singular, que não permitia que as raízes adoecessem: cheiro negro, cheiro África.

Sofriam sim, muito. Mas ao fim de cada tarde, voltavam da lida e, nestes encontros nas senzalas, estabeleciam um ritual. Um rito que misturava o culto a seus muitos deuses, aos causos, às danças, aos jogos, às cantorias, às comidas, à magia. Um rito cheio de saudade que, antes de qualquer coisa, representava o momento do reencontro com a pureza do que foram, um descanso que os reconectava com suas essências, com tudo aquilo que, na verdade, nunca haviam deixado de ser.
A esta pausa – de tudo que os afastava de quem realmente eram – atribuiu-se o nome de banzo.

E inacreditavelmente, apenas por meio do banzo, o sofrimento partia...