terça-feira, 11 de setembro de 2007

ainda sobre a pureza...


Em um desses domingos de inverno, frios e garoentos, acordei e fui comer pastel na feira. Fomos eu, a Carol - minha irmã - e a Fé, nossa amiga. Cá entre nós, hoje em dia, até escolher o pastel é uma tarefa árdua. A gente se estressa já com a quantidade de sabores, que vão dos tradicionais carne e queijo, aos peculiares estrogonofe, carne seca com catupiry e portuguesa – que até então, na minha humílima concepção, existia apenas como pizza.

Escolha definida, pedido feito. Enquanto esperávamos, os assuntos da semana vinham à tona, a prosa ia longe, os gestos se inflamavam. Em um dos muitos tiques e acenos retóricos, algo atraiu a atenção da Fé:

- Olha aquelas crianças, que lindas! - eram duas realmente belas e muito parecidas. Um menino e uma menina, cujas idades aparentavam não ultrapassar os 8 anos. Traços fortes, indígenas. Pele morena, cabelos lisos, bem pretos, cortados como tigelinha. Estavam em frente à banca, de pé, meio inquietos. As perninhas da menina tremiam, denunciando a expectativa ansiosa.

- Lindos, não?! Devem ser irmãos. Acho que estão com aquele rapaz. - presumiu minha irmã, referindo-se a um jovem também índio, de vinte e poucos anos, que estava logo ao lado.

Conversa vai, conversa vem. O tempo foi passando, o jovem indígena recebeu seus pedidos, foi embora, e as duas crianças continuaram lá. Olhares atentos aos pastéis que saíam.

Comecei então a repará-las. Percebi que, embora a aparência facial fosse saudável, ao baixar meu olhar, suas roupas estavam sujas e os pés descalços. Conclui que não estavam ali esperando a chegada dos próprios pastéis, apenas contemplavam aquele momento de prazer alheio.

A vontade de saborear um dos quitutes recém fritos, saídos um a um em suas frentes, era eminente. A expressão em seus rostos impressionava. Mesmo ansiosa, refletia uma serenidade singular. As perninhas balançavam, mas as testas não franziam. Eram crianças diferentes das outras muitas que cruzamos em situação análoga, nos faróis ou em outros lugares. Embora os minutos naquela labuta já ultrapassassem os trinta e tantos - apenas no desejo e aguço do olfato, aliciado pelo cheiro dos pastéis –, os pequenos índios não faziam qualquer tipo de menção, que nos levasse a crer que, em algum momento, eles chegariam a verbalizar aquele desejo a alguém. Em uma passividade espantosa para quem não está acostumado, eles não pediam, só olhavam mesmo.

- Carol, chame-os. Vamos pegar um pastel pra eles! – manifestei-me.

Viraram desconfiados. Os olhos da menina brilharam, marejados. As perninhas começaram a balançar mais rapidamente, como se a ansiedade estivesse atingindo o ápice. Mas ela não falava nada. Apenas olhava para o menino a toda hora, como se solicitasse permissões constantes. Então presenciei algo lindo que, no cume da minha ignorância urbana, emocionou-me. Como se não pudéssemos saber sobre o que diziam, começaram a falar em outro dialeto.

- Vamos, escolham! – insistiu minha irmã.

Só então os dois esboçaram um sorriso. O garoto antes, a garota depois, como se o consentimento tivesse-lhe sido dado.

- Em que língua vocês conversaram? – perguntei-lhes.

- Guarani – respondeu-me o menino

Ele chamava-se Rodrigo. Ela, Franciele. Única palavra que pronunciara.

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O Rodrigo e a Franciele são apenas dois dos cerca de 880 moradores da aldeia da Barragem, que fica no bairro de Parelheiros, extremo sul de São Paulo. A comunidade dispõe de 23,6 hectares de terras muito, muito pobres e negligenciadas. Favelas.

Apesar de toda devastação cultural que sofreram e continuam sofrendo, os índios têm alma bélica, algo que pôde ser constatado desde a colonização. Quando os Europeus abarcaram aqui, em 1500, com a falta de mão de obra, a primeira idéia “brilhante” que tiveram foi escravizar os homens selvagens que já se encontravam na terra, até então, virgem. Não conseguiram, claro. Como guerreiros natos que são, os índios só sobrevivem quando puros. Caso contrário, preferem acabar com a própria vida. E, pelo que me consta, cadáveres não são bons lavradores.

Ao longo dos 500 anos que se sucederam desde então, as tribos passaram por um processo de quase extinção. Hoje, segundo dados fornecidos pela FUNAI, vivem no Brasil cerca de 460 mil índios, distribuídos em 225 sociedades indígenas – número que compreende aproximadamente 0,25% da população brasileira, apenas.

Mesmo assim, a cultura indígena é algo que consegue vencer gerações de descaso e violência étnicos. Essas crianças são exemplos disso. Elas nunca viveram como índios de verdade, a aldeia em que moram é uma verdadeira musseque e, mesmo assim, ao conversarem, o português saía aos tropeços, mas o guarani não, era perfeito. Mesmo que por inércia, possuíam no jeito de falar e escutar, na graça, na cabeça, tudo que seus ancestrais viveram. Jovens índios como eles, que estão espalhados por diversos locais do território nacional, fazem coisas que mal sabem por que estão fazendo. Mas está no sangue, está na história e, de alguma forma, está vivo na mente deles também. E só por isso o fazem.

O Rodrigo e a Franciele são meninos educadinhos e desconfiados de tudo que não venha deles. Ela baixava a voz e a cabeça diante da presença masculina em sua companhia. Mesmo assim, ao contrário do que percebemos em nossa tão harmoniosa e evoluída estrutura social branca, aquele não era um ato agressivo, de submissão. Mas um trejeito sutil e gracioso, que conotava um deixar-se proteger, admitindo-se frágil. E ele protegia.

Eles têm brio.

É claro que muita coisa da cultura indígena já se perdeu e, infelizmente, a tendência é perderem-se cada vez mais. Mas o que alimenta meu otimismo são essas oportunidades com as quais o universo me presenteia. Presenciar a resistência esperançosa daqueles pequeninos índios, representou ali uma nova geração de guerreiros que não se entregam, e assim, não perderam sua essência no tempo e no espaço. Conhecem bem quem são e porque o são. Dessa forma, poderão alimentar intelectualmente com os mesmos preceitos de seus antepassados, uma próxima geração. Sim, porque só resiste bravamente quem tem esperança. E a história permite afirmar que eles resistiram sempre. O espírito da luta corre no sangue índio.

Perceber isso, aguçou também a minha esperança.

Embora já poucos, eles são exemplo vivo e, na medida do possível, feliz, da pureza que tanto acredito e defendo.

Minha mãe contou certa vez, que quando ainda estudava no colégio, escreveu uma redação que ganhou vários prêmios. Falava sobre os índios e os brancos. Nela, contava que nós, os caraíbas, deveríamos ser aliens que foram trazidos para a Terra há milhares de anos. Porque é inadmissível que, desde os primórdios, tenhamos tido tão pouca intimidade com o planeta que nos geriu.

Terrestre mesmo, acompanhando tal teoria, seriam os índios. Eles sim, viviam em perfeita harmonia entre si e com a natureza. Sabiam apreciar cada pequena coisa com a qual o mundo os presenteava, expressando sua generosidade e sabedoria. E neste contexto, sentiam-se completos. Nada lhes faltava. Eram gratos à mãe terra. O planeta, na concepção indígena, não precisava passar por transformações, evoluir. Ele era a casa perfeita para que, nela, pudessem cumprir sua única missão em vida: ser feliz.

Bom, todo esse textão só pra falar que:

- Mã, eu concordo com você!

5 comentários:

Anônimo disse...

Mari, seus olhos piçam o belo e o puro;seu coração escreve-os!
Bjs

Lina disse...

Mari-flor, que lindo. Forte tua ligação com a História. Deveria fazer um texto nessa aldeia, partindo dessas crianças e mandar para a Revista Brasileiros. Se quiser, te mando o e-mail da editora. Bjos, Lina

Anônimo disse...

Ta cada dia mais lindo o seu blog.

Precisamos sentar para conversar sobre o seu documentário. Eu quero falar muito sobre ele, mas queria adiantar uma coisa que até agora não falei: que linda a criança lendo os texto!!!!

Um beijo grande,
Na

natércia pontes disse...

gosto de como você começa o texto numa situação "íntima" e parte para uma dimensão social.

um beijo, mariana, e obrigada pela vista e pelas palavras! fiquei feliz!- a nat é testemunha.

Unknown disse...

Mari,

Otimo texto e ja sabe q seu blog tbm!

Beijos,
bru