quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

só sei que foi assim


E toda vez que ela dormia, acordava outra.

Às vezes dormia magra e acordava gorda.
Às vezes dormia verde e acordava cinza.
Às vezes dormia muito e acordava pouco.
Às vezes dormia inteira e acordava em mil pedacinhos.
Às vezes dormia má e acordava com água na boca.
Às vezes dormia rindo e acordava cheia de dúvidas.
Às vezes dormia reta e, num sei como diabos!!!, conseguia acordar perdida.

Mas foi depois daquela noite...
Aquela noite em que dormiu mulher.
Dormiu madura e segura de si.
Dormiu depois de um grito solto:
- FODA-SE!!!
Então...
Foi depois dessa aí mesmo, sei lá o que aconteceu.
Só ouvi dizerem por aí, que ela dormiu bem,
E nunca mais acordou.

Melhor assim.

sábado, 22 de dezembro de 2007

sobre o tempo que chega


Desejo-lhes, para este ano que vem à vida, o incômodo, a indignação e a misericórdia. E que estes sentimentos não se limitem apenas à suas mentes e corações. Que eles se revoltem em concretudes e ações, em socorro a um mundo com uma humanidade enferma.

Desejo-lhes a culpa. E que nela, cada um sinta-se um pouco Deus. Só ele é capaz de considerar-se verdadeiramente responsável por cada criança necessitada, cada ser humano miserável, por cada sofrimento e dor.

E que este auto-reconhecimento nos faça agir de encontro à demanda do Planeta Terra doente e de seus indivíduos doloridos.

Que nesta véspera de novo tempo, deixemos as promessas individuais de lado e adotemos promessas coletivas. Promessas que atinjam mais do que nosso metro quadrado e, mediante a tanta responsabilidade, as concretizemos com a certeza de que esta é a única maneira de atingirmos a felicidade real e permanente em nós mesmos.

Voltarmos para o sofrimento alheio é o caminho mais curto de nos encontrarmos em essência.

Um feliz Natal e um próspero Ano, para toda a humanidade, por meio de nossas próprias mãos. Apenas elas são capazes de transformar.

São meus votos sinceros,

Mari

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

em comprimido, por favor.


Aí ela teve vontade de falar:

- Se eu pudesse, não largava nunca mais...

Mas não falou.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

a morada da permanência


Um dia eu tive um pesadelo.
Sonhei que tinha perdido...

Que tinha perdido a espontaneidade de gritar quando sinto vontade,
De xingar quando dá no saco,
De chorar quando me comovo... Ou me revolto.
De encostar nas pessoas enquanto falo.
De tremer frente as injustiças,
Ou de simplesmente não achar normal.
De abraçar com desejo... Muito desejo.
De beijar estalado,
De apontar quando tá errado,
De tentar consertar. Pelo menos tentar...
De me desculpar envergonhada,
De dançar debochado,
De gargalhar escrachado.
De me desesperar perdida,
De me permitir feliz, acolhida.

E o sonho triste se repetia.
Dava medo.
Medo de um dia acordar e perceber que aquilo não era mais sonho.

E o medo aparentemente nocivo, de repente evidenciou-se criativo
Pois me permitiu perceber, que essência, a gente nunca perde.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

no trouble


Não há motivo para desespero. Sempre existe uma saída! Consulte nosso solucionador de problemas.


terça-feira, 6 de novembro de 2007

procura-se


Procuro um templo.

Um lugarzinho que me ajude a aproximar-me daquilo que me rege. Do universo que está em mim. Tan cerca y tan lejos.
Já tem alguns anos que gasto energia o procurando. Quem convive perto de mim, sabe. Religiões me fascinam, mas me enojam. Por isso cisco em todas e sigo nenhuma.
E embora este seja um assunto que sempre permeie meus pensamentos, no final de semana passado, ele veio à tona num cenário meio despropositado, com minha amiga, a Fê. Numa prosa descontraída, num momento de graça, ela esbravejou:

- Você num tem medo de ser assim, pagã? Você precisa parar em alguma religião menina! Não pode! – e gargalhava. Na verdade, nós duas.

Aí fiquei pensando nisso, mais do que o de costume. Minha posição com relação às religiões é muito peculiar. Não sei se conseguirei um dia encontrar uma na qual eu me encaixe por inteiro. Ou melhor, uma que se encaixe por inteiro em mim. Penso mesmo que só conseguirei doutrinar-me efetivamente, a partir do momento que conseguir me evidenciar distinta o suficiente, para respeitá-la e exigi-la respeitar-me. Sem esforços. Por inércia. Assim, não deixarei de ser quem sou por consenti-la, tampouco gastarei meu latim tentando reescrevê-la a meu modo.

Foi então que encontrei respostas onde jamais pensei procurá-las. Longe, longe. Lembrei do universo caipira do Riobaldo, personagem forte de “Grande Sertão Veredas” - mundo sertanejo descrito por Guimarães Rosa. Mesmo distante, interiorano, cabrunco... Foi ali que me encontrei, no sertão chucro de Riobaldo. Me entendi em seu corpo sofrido e calejado pelo serrado. Me aceitei em seu coração puro e equivocado, por acreditar-se ignorante, mediante tanta sabedoria.

Deixo então com vocês, o desabafo honesto do Riobaldo.
E faço das dele, minhas palavras.

“Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre... decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia − que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado... Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre − o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue... Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar − o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! − o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todo faço, executado. Eu não tresmalho!
Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para concertar o consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.A gente nunca deve declarar que aceita inteiro o alheio − essa é que é a regra do rei!
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas − mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo é às brutas; mas que Deus é traiçoeiro! Ah!, uma beleza de traiçoeiro − dá gosto! A força dele, quando quer − moço! − me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê! Ele faz é na lei do mansinho − assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.”

terça-feira, 23 de outubro de 2007

pá pará, pá pará, pá pará, clack bum!


Informação. O que antes era tão escasso e seleto, hoje, não é privilégio de ninguém.
Ela chega já abalando geral, das mais diferentes formas: por meio de conversas informais, discussões profissionais, televisão, livros, revistas ou jornais. Chega para mim, para ela, pro Bill Gates, pro Zezinho que mora no morro, pro diretor geral da empresa que trabalha, pra Joana da comunidade ao lado ou pra dona Maria, dona do boteco da esquina.
Mas em quem não estiver preparado, ela chega e avassala. Arrasa o que tiver pela frente. Deturpa o original e torna-o, apenas, mais um mero consumidor de informação. Incha de tanto conhecimento vão.
Pode estudar Freud, Einstein e Pitágoras. Ler Oscar Wild, contos machadianos ou poesias de Pessoa. Dostoiévski, Brecht, Rimbaud. Debulhar física quântica, tocar piano e violoncelo. Dominar o alemão, o francês e o mandarim. Conhecer cada canto dos 5 continentes do planeta. Declamar, sem titubeio, todas as principais estatísticas sociais e econômicas do mundo. Saber de cor e salteado "O Capital" ou "Ulisses". Engolir Rousseau, Locke, Platão e cia ltda. Freqüentar espetáculos shakspearianos, musicais internacionais ou pequenas montagens atuais.
E tudo não adiantar nada. A não ser como artefatos que alimentarão cada vez mais aquela arrogância intelectual, a cada dia enraizada. Egoísta, é capaz apenas de distanciar tudo que, lamentavelmente, já não é unido faz tempo.

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- Hummmm... Funk carioca!

Poderia ter dito outra coisa também. Calhou de comentar a respeito do funk, por conta do assunto que discorria. Apesar disso, o fato é que, hoje em dia, é preciso coragem para admitir algumas predileções simples. Mesmo que seus motivos sejam peculiares ao daquela maioria, que gosta do mesmo que você, por razões completamente diferentes.
Mas para eles (”eles” aqui não se refere à maioria, refere-se aqueles lá, que nunca saem do plano do meio: nem lá, nem cá. Sem sal. Sonsos. Medianos), isso costuma não importar.

- Tá louca? – reação previsível. (Ahhh, e como ela odiava isso).

E com um sorriso irônico no rosto, uma resposta debochada regurgitava-se arrebatada num capcioso: “Bom, eu gosto...”.

E por mais que não devesse satisfações a respeito do porquê de suas preferências, as daria. Não como forma de ser aceita naquele grupo. Isso não mesmo. Mas como uma ferramenta que pudesse dar certo, na tentativa de reunir adeptos que pensassem, não o mesmo que ela, mas algo que fosse diferente do que estava cansada de ouvir. Permanecia ali, acreditando conceder uma oportunidade àquelas mentes viciosas, de tentarem conclusões distintas do que já está aqui, aí ou em qualquer outro lugar.
Tudo isso porque ela tinha esperança. Quisera Deus, capazes seriam aquelas pessoas de raciocinarem com propriedade e autonomia, ao menos naquele momento.
Não daria certo. Não conseguiria sequer esboçar seus argumentos. Fora interrompida novamente. Desistiu ao deparar-se com a prepotência daquele discurso intelectual pronto, do radicalismo e da impermeabilidade - se assim pudesse classificar – da construção que seguiria:

- Mais lamentável do que a música em si, é escutar alguém dizendo que gosta.

Algumas (muitas) vezes não a entendiam direito. Talvez porque não lhe concedessem oportunidade para que se fizesse entender. Ou porque esta fosse a alternativa mais laboriosa. Onde trabalhava, vivia cercada de doutores e mestres. De colegas estranhos, meio complexos - complexados?! - demais. Tinham a necessidade de altercar por tudo, com todos, o tempo inteiro. Eles sempre conheciam muito além do que pairava “nos mistérios do universo”. Ditavam moda e tendências audiovisuais, comportamentais, verbais e intelectuais. Mesmo assim, humanizá-las em prol de algo maior, não. Naquele meio, era fácil gritar: adoro Tchekov! Era bonito. Difícil mesmo era dissertar sobre o funk carioca.
E ela entendia. Devia ser complicado para eles. Tanta prepotência fecha. O novo não entra. O amor fica de fora. A compreensão também: “Ah! Por isso que a roda não pára, tampouco inverte o sentido...”.

Ela reservava em si o dom da associação, da articulação. (Talvez aí esteja a explicação do porquê de, às vezes, gostar de coisas tão comuns quanto desinteressantes a alguns, por razões tão diversas). Ela conectava. Ligava as coisas do mundo ao ser humano e sua capacidade de sentir. Era assim que problematizava conhecimento, articulava as informações com o contexto no qual vivia e, principalmente, no qual o outro vivia. E deste jeito era capaz de perceber a demanda do seu povo, das pessoas que a cercavam e da sua própria felicidade.
Vivera por isso. E morreria por isso, caso a vida tal sacrifício lhe impusesse.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

filhos da luz


"Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer. Deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente. Deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes, como móveis inofensivos, pra lhe servir quando for preciso, e nunca lhe causar danos morais, físicos ou psicológicos."
(Trecho da música Corpo de Lama, composição de Chico Science e Jorge du Peixe)



Uma brisa de poucos anos entrou meio desajeitada.
(Cheirava mortadela)
Cai, não cai.
Cai, não cai.
Quisera ela, teria mais um braço.
Livros já ocupavam os outros dois.
Tudo balançava.
Mochila nas costas, pesada.
(Talvez pesasse o futuro)
Cabelos pretos, lisos,
Arrumados em um suave topete frontal.
Estavam molhados.
Uniforme limpo, passado.
Manchas claras no rosto escuro.
Muito esforço, semblante caído, sonolento,
Uma ânsia angustiada por justiça e,
No final,
Um medo grande de que tudo acabasse não dando certo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

porque sim, não é resposta!


Acordou atrasado. O tempo só permitia que se vestisse rapidamente, pegasse sua bolsa, trancasse a porta da maloca na qual residia, e corresse, aos tropeços, até o ponto de ônibus mais próximo. O trajeto durava 16 minutos, mas naquela manhã chuvosa levara apenas 11. Precisava de dois ônibus e um trem para chegar até o recinto da labuta diária. Já havia se acostumado. Aprendera a relevar a falta de espaço e oxigênio durante cada uma das três viagens - número que dobrava, quando consideradas as de volta, às 18h, todos os dias. Só não admitia ir pendurado na porta.
- Ahhh não! Aí é demais! - por isso costumava demorar parado no ponto, por vezes mais do que o tempo que levavam as três viagens juntas. Esperava até passar um carro que o coubesse, se não dignamente, ao menos, junto de seus 4 membros inferiores e superiores.
Sim, era um rapaz de metamorfoses. Lentas, porém constantes. Todas sempre dentro de seu próprio tempo. Um tanto acanhado, solitário. Acomodado não, isso não. Ao contrário, sua personalidade afligia. Marulhava qualquer ambiente que o acolhesse. Era engajado. De poucas palavras, mas suficientemente hábil para estabelecer conexões a partir do que conhecera, do que vivera.
Gostava de bisbilhotar sites pessoais, mas era incapaz de produzir um próprio. Passava o dia fuçando os de outros: anônimos, famosos, famigerados, intelectuais, jornalistas, falsários - embora, até hoje, ainda não consiga perceber muita diferença entre os dois últimos. Possuía seus preteridos e preferidos. O do Marcelo Tas (apresentador, escritor e roteirista de televisão. Mais conhecido por alguns como “Professor Tibúrcio”) era um de seus prediletos. Não entrava apenas todos os dias, como várias vezes a cada dia. Ah, ele também nunca comentava. Como já dito antes, não possuía muita intimidade nem consigo mesmo, nem com suas opiniões ou críticas.
Tinha uma bicicleta velha. Era ultrapassada, pesada, mas ainda gozava de bom estado. Aquele esqueleto metálico ligado às duas rodas convencionais, ficava encostado na área de serviço. Dia e noite, noite e dia. Certa vez, aventurou-se nos becos paulistanos. Pedalou logo cedo até a empresa para a qual lavrava. Mas bastou este primeiro ensejo, para logo perceber a periculosidade da empreitada, e desistir de repeti-la. Não por falta de força de vontade ou garra - qualidades que possuía em abundância -, mas sim por amor à própria vida. Não podia se dar ao luxo de usar a bicicleta naquela cidade que, quisera ou não ele, fora projetada apenas para a circulação diária de milhões e milhões de “rodas motorizadas”.


Enfim, aos trancos e barrancos já habituais, chegara mais um dia ao escritório. Lá dentro, fechado, o odor era de mofo. As janelas quase não abriam. Antigas que eram, emperravam. A tinta das paredes descascava. Os banheiros fediam dejetos fecais. Mesmo assim, ao sentar-se em sua cadeira, gozava de momentos de interino prazer. Ligava seu computador medieval. Alguns bons minutos e segundos era o tempo que o aparelho levava até que ficasse completamente pronto. Só então, começava sua leitura diária. Navegava por sites de jornais, revistas e, como já adiantado, pessoais. Era sempre assim. Antes de todos os outros, aquele do Tas. Post da primeira hora do dia: “Dia Mundial Sem Carro: dentro do túnel Airton Senna”. Nele, Tas dissertava sobre uma das ações feitas por alguns grafiteiros renomados no mundo underground, em apoio ao movimento que aconteceria no sábado seguinte.

* Nota do narrador: eu, particularmente, até achei a idéia simpática...

...já o rapaz não, revoltou-se. Seu cotidiano era algo que não lhe abandonava os pensamentos. Deixou-se levar pela fúria. Mas apenas por alguns instantes. Depois, reconstruiu seu semblante sempre contido e sereno, e na contramão do que sempre fizera, vencera a barreira que separava seus alvedrios e talantes, do desdenhado universo do conhecimento comum. Foi então que, ignorando quem sempre acreditou que fosse, escreveu um pequeno texto ao amigo virtual:

Caro Tas,

Apenas uma ressalva de um indivíduo que, há muito, faz de todos os seus dias "dias sem carro", e só não desiste porque já se acostumou a enfrentar as tamanhas, diversas e constantes guerras diárias, resistindo bravamente.
Acho louvável a troca do carro por saudáveis caminhadas, pela bicicleta ou pelo uso dos transportes coletivos. Mas infelizmente, na situação na qual nos encontramos, um Dia Sem Carro - como tudo que acontece isolado e ignora a inserção em um contexto - acaba não fazendo sentido. Utilizo o sistema viário e ferroviário todos os dias, e posso afirmar seguramente, que a estrutura atual já não comporta os transeuntes que precisam servir-se dela diariamente. Pessoas que, na melhor das hipóteses, vão esmagadas e penduradas nas portas, QUANDO!... conseguem algum espaço para a viagem da vez.
Segundo cálculos feitos pelo Jornal Destak - a partir de dados fornecidos pela ANTP, CET, DENATRAN e SP-TRANS -, se os 3,8 milhões de carros resolvessem deixar de circular na grande São Paulo, o sistema atual ganharia até 5,7 milhões de novos passageiros. Para comportar tal demanda, seriam necessários mais 6900 ônibus – um acréscimo de 46% em relação à frota atual, que conta com apenas 15 mil unidades.
Esta é, obviamente, uma situação hipotética. A probabilidade de todos os automóveis abandonarem as vias paulistanas é irrisória. Mas é evidente que, caso uma pequena porcentagem deste número fique parada nas garagens e afins, ao menos nos horários de rush, o sistema de transportes entraria em colapso geral.
Até faria algum sentido, se tal mobilização fosse iniciativa da própria população, ou de algum órgão que não tivesse qualquer ligação com o governo. Ora, os cidadãos cobram do exercício público, o que é justo. Mas uma ação de caráter reivindicativo como esta, partindo da prefeitura, chegaria a ser cômica, se não fosse dramática e zombeteira, com os próprios usuários. Ao que parece, os senhores eleitos para cumprir suas obrigações perante o povo - dentre elas transporte coletivo e condições dignas e seguras para a viabilização de outras formas limpas de locomoção – além de se absterem da função a qual os cabe, ainda saem às ruas reivindicando tal labuta de alguém. Mas de quem?
Bom, confesso estar confuso assistindo a tudo isto. E em meio a esta balbúrdia mental que me foi causada, apenas uma pergunta ecoa em minha cabeça: de quem? A população sai às ruas, com apoio das prefeituras, para cobrar ação de quem? Medidas como este dia temático, seriam dignas, desde que pensadas em seu contexto e acompanhadas dos aparatos que demandam. Caso contrário, tornam-se apenas mais palavras jogadas que, apesar da nobreza, acabam não passando disso. São proferidas, mas inviabilizáveis na prática.
E quem sofre no final? Aquele que não tem o dia sem carro como opção, mas como uma obrigação: cotidiana, dolorosa e sofrida. O atual governo paulistano parece um tanto quanto campeão em medidas como esta, não? Medidas que seriam honráveis, não fosse o olhar viciado de quem as aprova e executa.
Peço ao universo não apenas cada vez mais dias sem carro, como também cada vez menos carros, para que nosso planeta possa voltar a respirar. Em contrapartida, peço um governante que consiga enxergar além. Que perceba seu povo em complexidade, e assim, não tenha coragem de tomar atitudes que, além de estabelecerem como ponto de partida discursos vãos e infundados - em prol de publicidade barata -, favoreçam apenas uma parcela mínima da população, em detrimento de tantas outras.

Adoro seu blog.

Um abraço,

C. P.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

3/4


Três quartos é uma quantidade que quase sempre representa muito. Bom, pra mim pelo menos. É muito porque, seja lá do que for, já passou da metade mais a metade da metade.

¾ de um dia, por exemplo. Essa hora já está anoitecendo, então já passou muito desse dia.
¾ de uma pizza, é quase ela inteira, é muito.
¾ de um livro, ele está quase no fim. Isso quer dizer que já foi lido muito.
¾ de um job que tem que ser entregue logo. É aquele momento do alívio, porque sabe-se que está bem encaminhado, trabalhou-se muito nele.
¾ de um cd são suficientes para escutar quase todas as músicas, muitas músicas.
¾ de um pote de sorvete. É quando a gente pega a colher e ela encosta-se ao fundo. Isso acontece porque já comemos muito.

Mas...

Quando o assunto é a pobreza no mundo, aí 3/4 não representam apenas muito, representam praticamente tudo:

- ¾ da população mundial vive abaixo da linha da miséria.

Leia-se:

“linha da miséria” - quem vive com até 2 dólares ao dia;
“abaixo da linha da miséria” - que existem pessoas no mundo que sobrevivem com MENOS de dois dólares ao dia;
“¾” - que essas pessoas compreendem quase toda população do globo.

Isso não me sai da cabeça.

Falta de amor? Só pode...

Será que amar é vocação, daquelas que uns nascem com, outros sem?

Hummm... Tomara que não.

¾ do coração das pessoas que compõem o ¼ restante da população do planeta, bem que poderiam ser tomados de AMOR.

Mas ahhhhhhh, se amar fosse fácil...

Disse o Frei Betto, num artigo chamado “A paz dos meus sonhos”, escrito certa vez para a Ouvidoria do site do Ministério da Fazenda: “(...) Ao equilíbrio de forças, acrescia a justiça; à justiça, adicionava o amor. Só o amor é capaz de superar o direito e evitar fazer das diferenças divergências, pois nos ensina a ajudar e conviver com aquele que não é como nós nem pensa como pensamos e, no entanto, possui a mesma dignidade humana (...)”.
* Este texto foi escrito há cerca de 1 ano. Como ontem assisti ao programa Roda Viva com o Mano Brown, resolvi postá-lo. Achei que tinha a ver... sei lá.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

ainda sobre a pureza...


Em um desses domingos de inverno, frios e garoentos, acordei e fui comer pastel na feira. Fomos eu, a Carol - minha irmã - e a Fé, nossa amiga. Cá entre nós, hoje em dia, até escolher o pastel é uma tarefa árdua. A gente se estressa já com a quantidade de sabores, que vão dos tradicionais carne e queijo, aos peculiares estrogonofe, carne seca com catupiry e portuguesa – que até então, na minha humílima concepção, existia apenas como pizza.

Escolha definida, pedido feito. Enquanto esperávamos, os assuntos da semana vinham à tona, a prosa ia longe, os gestos se inflamavam. Em um dos muitos tiques e acenos retóricos, algo atraiu a atenção da Fé:

- Olha aquelas crianças, que lindas! - eram duas realmente belas e muito parecidas. Um menino e uma menina, cujas idades aparentavam não ultrapassar os 8 anos. Traços fortes, indígenas. Pele morena, cabelos lisos, bem pretos, cortados como tigelinha. Estavam em frente à banca, de pé, meio inquietos. As perninhas da menina tremiam, denunciando a expectativa ansiosa.

- Lindos, não?! Devem ser irmãos. Acho que estão com aquele rapaz. - presumiu minha irmã, referindo-se a um jovem também índio, de vinte e poucos anos, que estava logo ao lado.

Conversa vai, conversa vem. O tempo foi passando, o jovem indígena recebeu seus pedidos, foi embora, e as duas crianças continuaram lá. Olhares atentos aos pastéis que saíam.

Comecei então a repará-las. Percebi que, embora a aparência facial fosse saudável, ao baixar meu olhar, suas roupas estavam sujas e os pés descalços. Conclui que não estavam ali esperando a chegada dos próprios pastéis, apenas contemplavam aquele momento de prazer alheio.

A vontade de saborear um dos quitutes recém fritos, saídos um a um em suas frentes, era eminente. A expressão em seus rostos impressionava. Mesmo ansiosa, refletia uma serenidade singular. As perninhas balançavam, mas as testas não franziam. Eram crianças diferentes das outras muitas que cruzamos em situação análoga, nos faróis ou em outros lugares. Embora os minutos naquela labuta já ultrapassassem os trinta e tantos - apenas no desejo e aguço do olfato, aliciado pelo cheiro dos pastéis –, os pequenos índios não faziam qualquer tipo de menção, que nos levasse a crer que, em algum momento, eles chegariam a verbalizar aquele desejo a alguém. Em uma passividade espantosa para quem não está acostumado, eles não pediam, só olhavam mesmo.

- Carol, chame-os. Vamos pegar um pastel pra eles! – manifestei-me.

Viraram desconfiados. Os olhos da menina brilharam, marejados. As perninhas começaram a balançar mais rapidamente, como se a ansiedade estivesse atingindo o ápice. Mas ela não falava nada. Apenas olhava para o menino a toda hora, como se solicitasse permissões constantes. Então presenciei algo lindo que, no cume da minha ignorância urbana, emocionou-me. Como se não pudéssemos saber sobre o que diziam, começaram a falar em outro dialeto.

- Vamos, escolham! – insistiu minha irmã.

Só então os dois esboçaram um sorriso. O garoto antes, a garota depois, como se o consentimento tivesse-lhe sido dado.

- Em que língua vocês conversaram? – perguntei-lhes.

- Guarani – respondeu-me o menino

Ele chamava-se Rodrigo. Ela, Franciele. Única palavra que pronunciara.

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O Rodrigo e a Franciele são apenas dois dos cerca de 880 moradores da aldeia da Barragem, que fica no bairro de Parelheiros, extremo sul de São Paulo. A comunidade dispõe de 23,6 hectares de terras muito, muito pobres e negligenciadas. Favelas.

Apesar de toda devastação cultural que sofreram e continuam sofrendo, os índios têm alma bélica, algo que pôde ser constatado desde a colonização. Quando os Europeus abarcaram aqui, em 1500, com a falta de mão de obra, a primeira idéia “brilhante” que tiveram foi escravizar os homens selvagens que já se encontravam na terra, até então, virgem. Não conseguiram, claro. Como guerreiros natos que são, os índios só sobrevivem quando puros. Caso contrário, preferem acabar com a própria vida. E, pelo que me consta, cadáveres não são bons lavradores.

Ao longo dos 500 anos que se sucederam desde então, as tribos passaram por um processo de quase extinção. Hoje, segundo dados fornecidos pela FUNAI, vivem no Brasil cerca de 460 mil índios, distribuídos em 225 sociedades indígenas – número que compreende aproximadamente 0,25% da população brasileira, apenas.

Mesmo assim, a cultura indígena é algo que consegue vencer gerações de descaso e violência étnicos. Essas crianças são exemplos disso. Elas nunca viveram como índios de verdade, a aldeia em que moram é uma verdadeira musseque e, mesmo assim, ao conversarem, o português saía aos tropeços, mas o guarani não, era perfeito. Mesmo que por inércia, possuíam no jeito de falar e escutar, na graça, na cabeça, tudo que seus ancestrais viveram. Jovens índios como eles, que estão espalhados por diversos locais do território nacional, fazem coisas que mal sabem por que estão fazendo. Mas está no sangue, está na história e, de alguma forma, está vivo na mente deles também. E só por isso o fazem.

O Rodrigo e a Franciele são meninos educadinhos e desconfiados de tudo que não venha deles. Ela baixava a voz e a cabeça diante da presença masculina em sua companhia. Mesmo assim, ao contrário do que percebemos em nossa tão harmoniosa e evoluída estrutura social branca, aquele não era um ato agressivo, de submissão. Mas um trejeito sutil e gracioso, que conotava um deixar-se proteger, admitindo-se frágil. E ele protegia.

Eles têm brio.

É claro que muita coisa da cultura indígena já se perdeu e, infelizmente, a tendência é perderem-se cada vez mais. Mas o que alimenta meu otimismo são essas oportunidades com as quais o universo me presenteia. Presenciar a resistência esperançosa daqueles pequeninos índios, representou ali uma nova geração de guerreiros que não se entregam, e assim, não perderam sua essência no tempo e no espaço. Conhecem bem quem são e porque o são. Dessa forma, poderão alimentar intelectualmente com os mesmos preceitos de seus antepassados, uma próxima geração. Sim, porque só resiste bravamente quem tem esperança. E a história permite afirmar que eles resistiram sempre. O espírito da luta corre no sangue índio.

Perceber isso, aguçou também a minha esperança.

Embora já poucos, eles são exemplo vivo e, na medida do possível, feliz, da pureza que tanto acredito e defendo.

Minha mãe contou certa vez, que quando ainda estudava no colégio, escreveu uma redação que ganhou vários prêmios. Falava sobre os índios e os brancos. Nela, contava que nós, os caraíbas, deveríamos ser aliens que foram trazidos para a Terra há milhares de anos. Porque é inadmissível que, desde os primórdios, tenhamos tido tão pouca intimidade com o planeta que nos geriu.

Terrestre mesmo, acompanhando tal teoria, seriam os índios. Eles sim, viviam em perfeita harmonia entre si e com a natureza. Sabiam apreciar cada pequena coisa com a qual o mundo os presenteava, expressando sua generosidade e sabedoria. E neste contexto, sentiam-se completos. Nada lhes faltava. Eram gratos à mãe terra. O planeta, na concepção indígena, não precisava passar por transformações, evoluir. Ele era a casa perfeita para que, nela, pudessem cumprir sua única missão em vida: ser feliz.

Bom, todo esse textão só pra falar que:

- Mã, eu concordo com você!

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

sobre a pureza 2


"A pura construção da felicidade, feixe a feixe de luz, denunciando que a vida é um prazo imperdível, para somar ao coração, a essencialidade do que é outro."
Pureza, segundo Fernando Gil (1937-2006)

Tem gente que fala da pureza de um alimento que acaba de ser-nos presenteado pela natureza.
Tem gente que fala da pureza de uma criança que nasceu há pouco.
Tem gente que fala da pureza de um cachorro que felicita seu dono, mesmo depois de uma bronca daquelas.
Tem gente que fala da pureza da água, de metais preciosos, da pureza sexual.

Mas pra mim, pureza é muito mais. É algo que brota da essência...

Uma abstração.

Simples assim. Tanto, que complica.

Misteriosa no que “não é nem está”. Ausência laboriosa...

...de tudo que contamina. De qualquer coisa que impeça a autenticidade, que faça perder-se na tentativa de encontrar a missão no mundo... À que veio.

É tão visceral, que às vezes dribla a felicidade e sofre, mesmo sem querer.

Incrível, permeia os extremos: confunde e elucida. Alegra escandalosamente e acovarda em valentia.

Permite o autoconhecimento a partir das relações estabelecidas com outros.

Liberta e gratifica.

Vai à contramão da crença majoritária, portanto, assumi-la exige resistência, força e, algumas vezes, muita luta. Guerra.

Independe daquela sua mania de falar tanto palavrão, de sua espontaneidade incompreendida e escandalosa, dos muitos sonhos atemporais, aventuras sexuais ou devaneios irreais.

Ela ignora tudo isso.

Daí, a beleza da pureza.

Em suma: ela é tudo que te contém.

É apenas você...

...vindo da alma, com escala no coração.

domingo, 2 de setembro de 2007

sobre a pureza 1


(Atendendo às perguntas)

Como já é bem sabido, poucas décadas após a colonização da então "Ilha de Vera Cruz”, escravos começaram a ser trazidos da África para suprir a necessidade de mão de obra. Transportados em condições desumanas, ao chegarem, eram recortados do contexto do qual vieram. Aqui, seriam obrigados a trabalhar a troco de nada, em empreitadas que, para eles, não faziam sentido. Mercantilizados, eram separados de suas famílias e coibidos de tudo que os remetesse ao que realmente eram, à suas congenitudes. Vidas anuladas.

E assim, o tempo ia passando. Maus tratos e muito trabalho, de sol a sol, dia após dia.

Mas o fato é que, no fim, todos os esforços contra a dissipação da cultura africana acabavam não adiantando muito. Porque a senzala...

Ahhh... Ela tinha um ar próprio e um aroma singular, que não permitia que as raízes adoecessem: cheiro negro, cheiro África.

Sofriam sim, muito. Mas ao fim de cada tarde, voltavam da lida e, nestes encontros nas senzalas, estabeleciam um ritual. Um rito que misturava o culto a seus muitos deuses, aos causos, às danças, aos jogos, às cantorias, às comidas, à magia. Um rito cheio de saudade que, antes de qualquer coisa, representava o momento do reencontro com a pureza do que foram, um descanso que os reconectava com suas essências, com tudo aquilo que, na verdade, nunca haviam deixado de ser.
A esta pausa – de tudo que os afastava de quem realmente eram – atribuiu-se o nome de banzo.

E inacreditavelmente, apenas por meio do banzo, o sofrimento partia...

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

com vcs, ele!


Ele nasceu hoje.

Sem razões ou porquês...

Ainda num tem cara, mal tem conteúdo, layout definido ou temas específicos ...

...mas já tem coração.