terça-feira, 23 de outubro de 2007

pá pará, pá pará, pá pará, clack bum!


Informação. O que antes era tão escasso e seleto, hoje, não é privilégio de ninguém.
Ela chega já abalando geral, das mais diferentes formas: por meio de conversas informais, discussões profissionais, televisão, livros, revistas ou jornais. Chega para mim, para ela, pro Bill Gates, pro Zezinho que mora no morro, pro diretor geral da empresa que trabalha, pra Joana da comunidade ao lado ou pra dona Maria, dona do boteco da esquina.
Mas em quem não estiver preparado, ela chega e avassala. Arrasa o que tiver pela frente. Deturpa o original e torna-o, apenas, mais um mero consumidor de informação. Incha de tanto conhecimento vão.
Pode estudar Freud, Einstein e Pitágoras. Ler Oscar Wild, contos machadianos ou poesias de Pessoa. Dostoiévski, Brecht, Rimbaud. Debulhar física quântica, tocar piano e violoncelo. Dominar o alemão, o francês e o mandarim. Conhecer cada canto dos 5 continentes do planeta. Declamar, sem titubeio, todas as principais estatísticas sociais e econômicas do mundo. Saber de cor e salteado "O Capital" ou "Ulisses". Engolir Rousseau, Locke, Platão e cia ltda. Freqüentar espetáculos shakspearianos, musicais internacionais ou pequenas montagens atuais.
E tudo não adiantar nada. A não ser como artefatos que alimentarão cada vez mais aquela arrogância intelectual, a cada dia enraizada. Egoísta, é capaz apenas de distanciar tudo que, lamentavelmente, já não é unido faz tempo.

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- Hummmm... Funk carioca!

Poderia ter dito outra coisa também. Calhou de comentar a respeito do funk, por conta do assunto que discorria. Apesar disso, o fato é que, hoje em dia, é preciso coragem para admitir algumas predileções simples. Mesmo que seus motivos sejam peculiares ao daquela maioria, que gosta do mesmo que você, por razões completamente diferentes.
Mas para eles (”eles” aqui não se refere à maioria, refere-se aqueles lá, que nunca saem do plano do meio: nem lá, nem cá. Sem sal. Sonsos. Medianos), isso costuma não importar.

- Tá louca? – reação previsível. (Ahhh, e como ela odiava isso).

E com um sorriso irônico no rosto, uma resposta debochada regurgitava-se arrebatada num capcioso: “Bom, eu gosto...”.

E por mais que não devesse satisfações a respeito do porquê de suas preferências, as daria. Não como forma de ser aceita naquele grupo. Isso não mesmo. Mas como uma ferramenta que pudesse dar certo, na tentativa de reunir adeptos que pensassem, não o mesmo que ela, mas algo que fosse diferente do que estava cansada de ouvir. Permanecia ali, acreditando conceder uma oportunidade àquelas mentes viciosas, de tentarem conclusões distintas do que já está aqui, aí ou em qualquer outro lugar.
Tudo isso porque ela tinha esperança. Quisera Deus, capazes seriam aquelas pessoas de raciocinarem com propriedade e autonomia, ao menos naquele momento.
Não daria certo. Não conseguiria sequer esboçar seus argumentos. Fora interrompida novamente. Desistiu ao deparar-se com a prepotência daquele discurso intelectual pronto, do radicalismo e da impermeabilidade - se assim pudesse classificar – da construção que seguiria:

- Mais lamentável do que a música em si, é escutar alguém dizendo que gosta.

Algumas (muitas) vezes não a entendiam direito. Talvez porque não lhe concedessem oportunidade para que se fizesse entender. Ou porque esta fosse a alternativa mais laboriosa. Onde trabalhava, vivia cercada de doutores e mestres. De colegas estranhos, meio complexos - complexados?! - demais. Tinham a necessidade de altercar por tudo, com todos, o tempo inteiro. Eles sempre conheciam muito além do que pairava “nos mistérios do universo”. Ditavam moda e tendências audiovisuais, comportamentais, verbais e intelectuais. Mesmo assim, humanizá-las em prol de algo maior, não. Naquele meio, era fácil gritar: adoro Tchekov! Era bonito. Difícil mesmo era dissertar sobre o funk carioca.
E ela entendia. Devia ser complicado para eles. Tanta prepotência fecha. O novo não entra. O amor fica de fora. A compreensão também: “Ah! Por isso que a roda não pára, tampouco inverte o sentido...”.

Ela reservava em si o dom da associação, da articulação. (Talvez aí esteja a explicação do porquê de, às vezes, gostar de coisas tão comuns quanto desinteressantes a alguns, por razões tão diversas). Ela conectava. Ligava as coisas do mundo ao ser humano e sua capacidade de sentir. Era assim que problematizava conhecimento, articulava as informações com o contexto no qual vivia e, principalmente, no qual o outro vivia. E deste jeito era capaz de perceber a demanda do seu povo, das pessoas que a cercavam e da sua própria felicidade.
Vivera por isso. E morreria por isso, caso a vida tal sacrifício lhe impusesse.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

filhos da luz


"Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer. Deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente. Deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes, como móveis inofensivos, pra lhe servir quando for preciso, e nunca lhe causar danos morais, físicos ou psicológicos."
(Trecho da música Corpo de Lama, composição de Chico Science e Jorge du Peixe)



Uma brisa de poucos anos entrou meio desajeitada.
(Cheirava mortadela)
Cai, não cai.
Cai, não cai.
Quisera ela, teria mais um braço.
Livros já ocupavam os outros dois.
Tudo balançava.
Mochila nas costas, pesada.
(Talvez pesasse o futuro)
Cabelos pretos, lisos,
Arrumados em um suave topete frontal.
Estavam molhados.
Uniforme limpo, passado.
Manchas claras no rosto escuro.
Muito esforço, semblante caído, sonolento,
Uma ânsia angustiada por justiça e,
No final,
Um medo grande de que tudo acabasse não dando certo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

porque sim, não é resposta!


Acordou atrasado. O tempo só permitia que se vestisse rapidamente, pegasse sua bolsa, trancasse a porta da maloca na qual residia, e corresse, aos tropeços, até o ponto de ônibus mais próximo. O trajeto durava 16 minutos, mas naquela manhã chuvosa levara apenas 11. Precisava de dois ônibus e um trem para chegar até o recinto da labuta diária. Já havia se acostumado. Aprendera a relevar a falta de espaço e oxigênio durante cada uma das três viagens - número que dobrava, quando consideradas as de volta, às 18h, todos os dias. Só não admitia ir pendurado na porta.
- Ahhh não! Aí é demais! - por isso costumava demorar parado no ponto, por vezes mais do que o tempo que levavam as três viagens juntas. Esperava até passar um carro que o coubesse, se não dignamente, ao menos, junto de seus 4 membros inferiores e superiores.
Sim, era um rapaz de metamorfoses. Lentas, porém constantes. Todas sempre dentro de seu próprio tempo. Um tanto acanhado, solitário. Acomodado não, isso não. Ao contrário, sua personalidade afligia. Marulhava qualquer ambiente que o acolhesse. Era engajado. De poucas palavras, mas suficientemente hábil para estabelecer conexões a partir do que conhecera, do que vivera.
Gostava de bisbilhotar sites pessoais, mas era incapaz de produzir um próprio. Passava o dia fuçando os de outros: anônimos, famosos, famigerados, intelectuais, jornalistas, falsários - embora, até hoje, ainda não consiga perceber muita diferença entre os dois últimos. Possuía seus preteridos e preferidos. O do Marcelo Tas (apresentador, escritor e roteirista de televisão. Mais conhecido por alguns como “Professor Tibúrcio”) era um de seus prediletos. Não entrava apenas todos os dias, como várias vezes a cada dia. Ah, ele também nunca comentava. Como já dito antes, não possuía muita intimidade nem consigo mesmo, nem com suas opiniões ou críticas.
Tinha uma bicicleta velha. Era ultrapassada, pesada, mas ainda gozava de bom estado. Aquele esqueleto metálico ligado às duas rodas convencionais, ficava encostado na área de serviço. Dia e noite, noite e dia. Certa vez, aventurou-se nos becos paulistanos. Pedalou logo cedo até a empresa para a qual lavrava. Mas bastou este primeiro ensejo, para logo perceber a periculosidade da empreitada, e desistir de repeti-la. Não por falta de força de vontade ou garra - qualidades que possuía em abundância -, mas sim por amor à própria vida. Não podia se dar ao luxo de usar a bicicleta naquela cidade que, quisera ou não ele, fora projetada apenas para a circulação diária de milhões e milhões de “rodas motorizadas”.


Enfim, aos trancos e barrancos já habituais, chegara mais um dia ao escritório. Lá dentro, fechado, o odor era de mofo. As janelas quase não abriam. Antigas que eram, emperravam. A tinta das paredes descascava. Os banheiros fediam dejetos fecais. Mesmo assim, ao sentar-se em sua cadeira, gozava de momentos de interino prazer. Ligava seu computador medieval. Alguns bons minutos e segundos era o tempo que o aparelho levava até que ficasse completamente pronto. Só então, começava sua leitura diária. Navegava por sites de jornais, revistas e, como já adiantado, pessoais. Era sempre assim. Antes de todos os outros, aquele do Tas. Post da primeira hora do dia: “Dia Mundial Sem Carro: dentro do túnel Airton Senna”. Nele, Tas dissertava sobre uma das ações feitas por alguns grafiteiros renomados no mundo underground, em apoio ao movimento que aconteceria no sábado seguinte.

* Nota do narrador: eu, particularmente, até achei a idéia simpática...

...já o rapaz não, revoltou-se. Seu cotidiano era algo que não lhe abandonava os pensamentos. Deixou-se levar pela fúria. Mas apenas por alguns instantes. Depois, reconstruiu seu semblante sempre contido e sereno, e na contramão do que sempre fizera, vencera a barreira que separava seus alvedrios e talantes, do desdenhado universo do conhecimento comum. Foi então que, ignorando quem sempre acreditou que fosse, escreveu um pequeno texto ao amigo virtual:

Caro Tas,

Apenas uma ressalva de um indivíduo que, há muito, faz de todos os seus dias "dias sem carro", e só não desiste porque já se acostumou a enfrentar as tamanhas, diversas e constantes guerras diárias, resistindo bravamente.
Acho louvável a troca do carro por saudáveis caminhadas, pela bicicleta ou pelo uso dos transportes coletivos. Mas infelizmente, na situação na qual nos encontramos, um Dia Sem Carro - como tudo que acontece isolado e ignora a inserção em um contexto - acaba não fazendo sentido. Utilizo o sistema viário e ferroviário todos os dias, e posso afirmar seguramente, que a estrutura atual já não comporta os transeuntes que precisam servir-se dela diariamente. Pessoas que, na melhor das hipóteses, vão esmagadas e penduradas nas portas, QUANDO!... conseguem algum espaço para a viagem da vez.
Segundo cálculos feitos pelo Jornal Destak - a partir de dados fornecidos pela ANTP, CET, DENATRAN e SP-TRANS -, se os 3,8 milhões de carros resolvessem deixar de circular na grande São Paulo, o sistema atual ganharia até 5,7 milhões de novos passageiros. Para comportar tal demanda, seriam necessários mais 6900 ônibus – um acréscimo de 46% em relação à frota atual, que conta com apenas 15 mil unidades.
Esta é, obviamente, uma situação hipotética. A probabilidade de todos os automóveis abandonarem as vias paulistanas é irrisória. Mas é evidente que, caso uma pequena porcentagem deste número fique parada nas garagens e afins, ao menos nos horários de rush, o sistema de transportes entraria em colapso geral.
Até faria algum sentido, se tal mobilização fosse iniciativa da própria população, ou de algum órgão que não tivesse qualquer ligação com o governo. Ora, os cidadãos cobram do exercício público, o que é justo. Mas uma ação de caráter reivindicativo como esta, partindo da prefeitura, chegaria a ser cômica, se não fosse dramática e zombeteira, com os próprios usuários. Ao que parece, os senhores eleitos para cumprir suas obrigações perante o povo - dentre elas transporte coletivo e condições dignas e seguras para a viabilização de outras formas limpas de locomoção – além de se absterem da função a qual os cabe, ainda saem às ruas reivindicando tal labuta de alguém. Mas de quem?
Bom, confesso estar confuso assistindo a tudo isto. E em meio a esta balbúrdia mental que me foi causada, apenas uma pergunta ecoa em minha cabeça: de quem? A população sai às ruas, com apoio das prefeituras, para cobrar ação de quem? Medidas como este dia temático, seriam dignas, desde que pensadas em seu contexto e acompanhadas dos aparatos que demandam. Caso contrário, tornam-se apenas mais palavras jogadas que, apesar da nobreza, acabam não passando disso. São proferidas, mas inviabilizáveis na prática.
E quem sofre no final? Aquele que não tem o dia sem carro como opção, mas como uma obrigação: cotidiana, dolorosa e sofrida. O atual governo paulistano parece um tanto quanto campeão em medidas como esta, não? Medidas que seriam honráveis, não fosse o olhar viciado de quem as aprova e executa.
Peço ao universo não apenas cada vez mais dias sem carro, como também cada vez menos carros, para que nosso planeta possa voltar a respirar. Em contrapartida, peço um governante que consiga enxergar além. Que perceba seu povo em complexidade, e assim, não tenha coragem de tomar atitudes que, além de estabelecerem como ponto de partida discursos vãos e infundados - em prol de publicidade barata -, favoreçam apenas uma parcela mínima da população, em detrimento de tantas outras.

Adoro seu blog.

Um abraço,

C. P.