quarta-feira, 3 de outubro de 2007

porque sim, não é resposta!


Acordou atrasado. O tempo só permitia que se vestisse rapidamente, pegasse sua bolsa, trancasse a porta da maloca na qual residia, e corresse, aos tropeços, até o ponto de ônibus mais próximo. O trajeto durava 16 minutos, mas naquela manhã chuvosa levara apenas 11. Precisava de dois ônibus e um trem para chegar até o recinto da labuta diária. Já havia se acostumado. Aprendera a relevar a falta de espaço e oxigênio durante cada uma das três viagens - número que dobrava, quando consideradas as de volta, às 18h, todos os dias. Só não admitia ir pendurado na porta.
- Ahhh não! Aí é demais! - por isso costumava demorar parado no ponto, por vezes mais do que o tempo que levavam as três viagens juntas. Esperava até passar um carro que o coubesse, se não dignamente, ao menos, junto de seus 4 membros inferiores e superiores.
Sim, era um rapaz de metamorfoses. Lentas, porém constantes. Todas sempre dentro de seu próprio tempo. Um tanto acanhado, solitário. Acomodado não, isso não. Ao contrário, sua personalidade afligia. Marulhava qualquer ambiente que o acolhesse. Era engajado. De poucas palavras, mas suficientemente hábil para estabelecer conexões a partir do que conhecera, do que vivera.
Gostava de bisbilhotar sites pessoais, mas era incapaz de produzir um próprio. Passava o dia fuçando os de outros: anônimos, famosos, famigerados, intelectuais, jornalistas, falsários - embora, até hoje, ainda não consiga perceber muita diferença entre os dois últimos. Possuía seus preteridos e preferidos. O do Marcelo Tas (apresentador, escritor e roteirista de televisão. Mais conhecido por alguns como “Professor Tibúrcio”) era um de seus prediletos. Não entrava apenas todos os dias, como várias vezes a cada dia. Ah, ele também nunca comentava. Como já dito antes, não possuía muita intimidade nem consigo mesmo, nem com suas opiniões ou críticas.
Tinha uma bicicleta velha. Era ultrapassada, pesada, mas ainda gozava de bom estado. Aquele esqueleto metálico ligado às duas rodas convencionais, ficava encostado na área de serviço. Dia e noite, noite e dia. Certa vez, aventurou-se nos becos paulistanos. Pedalou logo cedo até a empresa para a qual lavrava. Mas bastou este primeiro ensejo, para logo perceber a periculosidade da empreitada, e desistir de repeti-la. Não por falta de força de vontade ou garra - qualidades que possuía em abundância -, mas sim por amor à própria vida. Não podia se dar ao luxo de usar a bicicleta naquela cidade que, quisera ou não ele, fora projetada apenas para a circulação diária de milhões e milhões de “rodas motorizadas”.


Enfim, aos trancos e barrancos já habituais, chegara mais um dia ao escritório. Lá dentro, fechado, o odor era de mofo. As janelas quase não abriam. Antigas que eram, emperravam. A tinta das paredes descascava. Os banheiros fediam dejetos fecais. Mesmo assim, ao sentar-se em sua cadeira, gozava de momentos de interino prazer. Ligava seu computador medieval. Alguns bons minutos e segundos era o tempo que o aparelho levava até que ficasse completamente pronto. Só então, começava sua leitura diária. Navegava por sites de jornais, revistas e, como já adiantado, pessoais. Era sempre assim. Antes de todos os outros, aquele do Tas. Post da primeira hora do dia: “Dia Mundial Sem Carro: dentro do túnel Airton Senna”. Nele, Tas dissertava sobre uma das ações feitas por alguns grafiteiros renomados no mundo underground, em apoio ao movimento que aconteceria no sábado seguinte.

* Nota do narrador: eu, particularmente, até achei a idéia simpática...

...já o rapaz não, revoltou-se. Seu cotidiano era algo que não lhe abandonava os pensamentos. Deixou-se levar pela fúria. Mas apenas por alguns instantes. Depois, reconstruiu seu semblante sempre contido e sereno, e na contramão do que sempre fizera, vencera a barreira que separava seus alvedrios e talantes, do desdenhado universo do conhecimento comum. Foi então que, ignorando quem sempre acreditou que fosse, escreveu um pequeno texto ao amigo virtual:

Caro Tas,

Apenas uma ressalva de um indivíduo que, há muito, faz de todos os seus dias "dias sem carro", e só não desiste porque já se acostumou a enfrentar as tamanhas, diversas e constantes guerras diárias, resistindo bravamente.
Acho louvável a troca do carro por saudáveis caminhadas, pela bicicleta ou pelo uso dos transportes coletivos. Mas infelizmente, na situação na qual nos encontramos, um Dia Sem Carro - como tudo que acontece isolado e ignora a inserção em um contexto - acaba não fazendo sentido. Utilizo o sistema viário e ferroviário todos os dias, e posso afirmar seguramente, que a estrutura atual já não comporta os transeuntes que precisam servir-se dela diariamente. Pessoas que, na melhor das hipóteses, vão esmagadas e penduradas nas portas, QUANDO!... conseguem algum espaço para a viagem da vez.
Segundo cálculos feitos pelo Jornal Destak - a partir de dados fornecidos pela ANTP, CET, DENATRAN e SP-TRANS -, se os 3,8 milhões de carros resolvessem deixar de circular na grande São Paulo, o sistema atual ganharia até 5,7 milhões de novos passageiros. Para comportar tal demanda, seriam necessários mais 6900 ônibus – um acréscimo de 46% em relação à frota atual, que conta com apenas 15 mil unidades.
Esta é, obviamente, uma situação hipotética. A probabilidade de todos os automóveis abandonarem as vias paulistanas é irrisória. Mas é evidente que, caso uma pequena porcentagem deste número fique parada nas garagens e afins, ao menos nos horários de rush, o sistema de transportes entraria em colapso geral.
Até faria algum sentido, se tal mobilização fosse iniciativa da própria população, ou de algum órgão que não tivesse qualquer ligação com o governo. Ora, os cidadãos cobram do exercício público, o que é justo. Mas uma ação de caráter reivindicativo como esta, partindo da prefeitura, chegaria a ser cômica, se não fosse dramática e zombeteira, com os próprios usuários. Ao que parece, os senhores eleitos para cumprir suas obrigações perante o povo - dentre elas transporte coletivo e condições dignas e seguras para a viabilização de outras formas limpas de locomoção – além de se absterem da função a qual os cabe, ainda saem às ruas reivindicando tal labuta de alguém. Mas de quem?
Bom, confesso estar confuso assistindo a tudo isto. E em meio a esta balbúrdia mental que me foi causada, apenas uma pergunta ecoa em minha cabeça: de quem? A população sai às ruas, com apoio das prefeituras, para cobrar ação de quem? Medidas como este dia temático, seriam dignas, desde que pensadas em seu contexto e acompanhadas dos aparatos que demandam. Caso contrário, tornam-se apenas mais palavras jogadas que, apesar da nobreza, acabam não passando disso. São proferidas, mas inviabilizáveis na prática.
E quem sofre no final? Aquele que não tem o dia sem carro como opção, mas como uma obrigação: cotidiana, dolorosa e sofrida. O atual governo paulistano parece um tanto quanto campeão em medidas como esta, não? Medidas que seriam honráveis, não fosse o olhar viciado de quem as aprova e executa.
Peço ao universo não apenas cada vez mais dias sem carro, como também cada vez menos carros, para que nosso planeta possa voltar a respirar. Em contrapartida, peço um governante que consiga enxergar além. Que perceba seu povo em complexidade, e assim, não tenha coragem de tomar atitudes que, além de estabelecerem como ponto de partida discursos vãos e infundados - em prol de publicidade barata -, favoreçam apenas uma parcela mínima da população, em detrimento de tantas outras.

Adoro seu blog.

Um abraço,

C. P.

9 comentários:

Ana K. disse...

Adorei! Eu teria feito o mesmo que o rapaz do texto, com certeza!
Besotes, guapita!

Anônimo disse...

Mázinha,

adorei o seu Dia sem Carro!!!
E, adicionei o Meu Banzo nos meus Favoritos!
Vou entrar todo dia!!

...

Acho que conheço o C.P.
hehe

Bjinhos,
CarOLA

Guilherme Lima disse...

Salve Mari, também gostei muito do seu blog e ele com certeza é mais um dos blogs de conteúdo em que vou visitar com frequência. Quanto ao texto, achei animal, até porque idéias geniais todo mundo pode ter, mas aplicá-la de forma a beneficiar a todos.

Bjs

Guilherme Lima

Piá Minghini disse...

Oi mariiiiiiiiii!!
Adorei adorei adorei, e o trecho do einstein que vc colocou la foi show de bola!!!
bjo enorme guria!!

Lina disse...

Tem um monte de peito pelado doido pra vestir uma camiseta.
Energias positivas para a morena-flor. Bjos

Fourier disse...

Conheci através da "mente inquieta" muito bom e prometo peridOcidade.

Josie Moraes disse...

Impressionante como cada dia mais os caras no poder são apenas marketeiros dominados. Esta é mais uma daquelas ações que servem apenas para mostrar um lado divertido e inusitado de uma campanha sem resultados. Sofre mesmo quem vive no dia-a-dia com aquilo. Se estressa não só no ônibus quanto nos carros. O senso de coletividade acabou, parece que não existem mais setas, caronas, calma, preocupação com o outro.
Só sabe quem sente na pele. Andei bons anos de ônibus. Fazia um trajeto insuportável pela periferia de Diadema. Via gente morta, cheiro daqueles churrascos de gatos, tentativas de estupro, tráfico.. tudo.
Hoje tenho carro pela minha própria segurança. Mas ainda não suporto ouvir "depois que você compra um carro nunca mais vai querer andar de ônibus, nem em caso de extrema necessidade. Pago um táxi, peço para alguém, mas ônibus não dá!".

Impressionante como você, Mari, escreve crônica com lirismo. Tem uma facilidade impresisonante de escrever sobre comportamento e de se preocupar com o social sem marketing pessoal. Uma poeta jornalista... Pureza. Realidade. Informação.

O moleira em turbilhão agora dá um tempo e entra em cena o www.musicaparabrasileiros.blogspot.com

amo você!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Mari,
lendo seus textos vi que ainda tenho que conhecer mto de vc... simplesmente ótimo!

beijos,
bru